quinta-feira, 23 de junho de 2011

Entrevista com Henri Acselrad



Entrevista concedida pelo prof.Dr. Henri Acselrad, professor do IPPUR~UFRJ e pesquisador do CNPq ao Laboratório de Biogeografia e Climatologia


BIOCLIMA: Uma vez que a ciência geográfica traz em seus fundamentos a relação Homem-Natureza, como você percebe a atuação dos trabalhos desenvolvidos pela Geografia, a respeito da questão ambiental?

Henri: Antes de mais nada, informo que minha formação não se deu no campo da Geografia. Isto não me impediu, é claro, de acompanhar o trabalho de geógrafos que têm dado importante contribuição à construção científica da questão ambiental em suas articulações com as questões espaciais e territoriais. Penso, porém, que cabe problematizar ainda algumas abordagens do que chamam de “antropismo”, que, pensando estar destacando “o Homem” em sua relação com o ambiente, deixam de considerar tratarem-se sempre de sujeitos sociais e políticos particulares, portadores de diferentes lógicas sociais e simbólicas de apropriação dos territórios e seus recursos – e não de uma figura genérica de Homem.

BIOCLIMA: De que maneira os países em desenvolvimento podem se inserir na discussão da questão ambiental, como protagonistas?

Henri: Nos planos nacionais, isto implicaria em fazer da questão ambiental uma questão de Estado – algo que parece estar longe de acontecer. Boa parte dos países da América Latina subordina as medidas de proteção ao meio ambiente aos ditames dos grandes investidores. O que mais se vê é flexibilização das legislações em nome da necessidade de atrair investimentos internacionais ou de acelerar a execução de grande obras de infra-estrutura. No plano internacional, caberia fazer valer as evidências de que os maiores consumidores de recursos ambientais e maiores emissores de gases estufa são os países mais industrializados, cujas corporações deveriam proceder ao ajuste inaugural das matrizes de produção e consumo

BIOCLIMA: O desenvolvimento do aporte teórico que sustenta a discussão é muito significativa desde a Rio-92. Porém, apesar do esforço de se definir melhor determinados conceitos, ainda se persiste o uso indiscriminado de termos como sinônimos. Neste sentido, pode-se dizer que conflito socioambiental não seria uma tautologia de conflito ambiental?

Henri: É interessante observar que não se ouve falar de conflito sócio-urbano, sócio-trabalhista ou sócio-rural. Porque alguns acham necessário fazer preceder o “ambiental” pelo prefixo “sócio”? Acredito que a propensão de alguns a introduzir o prefixo “sócio” aos conflitos ambientais reflete a vontade de reagir à forte presença de um senso comum que fetichiza o ambiente, reduzindo-o a um estoque de matéria e energia destituído de seus conteúdos socais e culturais. Alguns acham necessário se distanciar de tal visão reducionista, sublinhando a indissociabilidade entre ambiente sociedade, ou seja, o fato da questão ambiental ser parte da questão social. Pois, é claro, todo conflito ambiental é social.

BIOCLIMA: Com o advento da modernização agrícola, pela lógica, não deveria ter diminuído o avanço da fronteira agrícola, pois atingiu mais produtividade num mesmo espaço de terra? Então porque isto não ocorreu? A legislação ambiental brasileira é um fator que contribuiu para este avanço?

Henri: A própria concessão do Prêmio Nobel de Economia de 2009 à cientista política Elinor Ostrom, estudiosa das formas de gestão coletiva dos recursos do território, refletiu a crescente aceitação do entendimento de que são múltiplas as formas sociais de gestão e manejo não-mercantis de ecossistemas segundo lógicas de eficiência coletiva – ou seja, com otimização dos ganhos coletivos do manejo. A experiência da modernização do campo que observamos se disseminar por todo o mundo deu-se até aqui através da desestruturação desta pluralidade sócio-técnica de formas de manejo, em razão da expansão territorial dominante da grande propriedade privada tecnificada de base químico-mecânica. A idéia de “alto desempenho agrícola” é, na lógica hoje hegemônica, vista segundo um horizonte temporal curto. Ela pressupõe que o esgotamento dos solos provocado pela intensidade da exploração de alta lucratividade de curto prazo, dará oportunidade à obtenção de mais lucros através do uso de defensivos e fertilizantes de origem industrial. O ciclo de acumulação de capital é, pois, a referência, e não a reprodutibilidade da base material da agricultura. A consideração da dimensão ambiental da produção implica, portanto, não só em achar e utilizar “técnicas mais eficientes” do ponto de vista dos resultados monetários, mas em problematizar politicamente as chamadas “falhas de mercado”, ou seja, as evidências de que os indicadores de mercado estimulam modos de uso privado da terra, do ar e das águas que resultam na destruição de suas funções coletivas, tanto para as formas sociais de produção não-hegemônicas – como as camponesas, da pesca artesanal, de indígenas, quilombolas etc. – como para o conjunto da sociedade. E para se problematizar politicamente os impactos dos usos privados sobe o bem coletivo, é preciso que a legislação não seja tratada como uma “tapeçaria de Penélope”, em que o que é feito de dia, na ótica dos direitos, seja desfeito de noite, na ótica dos grandes interesses.

BIOCLIMA: Qual é sua avaliação acerca das modificações propostas no novo código florestal, na câmara federal?

Henri: A proposta de alteração do Código Florestal do chamado “Relatório Aldo Rebelo” pretende anistiar os desmatamentos ilegais realizados em Áreas de Proteção Permanente até 2008; diminuir a proteção aos rios e topos de morro; reduzir a área destinada a ser mantida em reserva legal em todo o país; permitir a compensação da área de reserva legal em lugares remotos sem a necessidade de se observar nenhum critério ambiental e possibilitar que municípios autorizem desmatamento. Trata-se, como se vê, de uma iniciativa destinada a desfazer um a um os dispositivos legais que até o momento estabeleciam algum limite ao desmatamento no país. Se aprovadas, estas mudanças farão com que não seja mais necessário recuperar os desmatamentos ilegais realizados em encostas, beiras de rio e áreas úmidas; reduzirão a proteção de rios menores e mais frágeis, cujas margens hoje ainda protegidas asseguram proteção contra o assoreamento; retirarão toda proteção aos topos de morro, sujeitos a deslizamentos e erosão. Por outro lado, o relatório propõe que se redistribua o poder de legalização dos desmatamentos, atribuindo aos municípios a competência de autorizá-los, o que acentuará o descontrole na gestão florestal, já que são comuns os casos de prefeitos que têm interesse pessoal no agronegócio, configurando possíveis conflitos de interesses.

Tal investida contra a legislação ambiental repete, com um vigor particular, o esforço permanente de recusar toda restrição legal ao exercício ilimitado do poder de proprietários privados sobre seus meios de produção. Leis e normas ambientais que pressupõem, tal como na Constituição de 1988, “o meio ambiente como bem de uso comum do povo”, são, via de regra, apresentadas como entraves burocráticos ao desenvolvimento. O mais puro ideário liberal-privatista, inspirado em Locke e reciclado por retóricas nacionalistas e de solidariedade para com os famintos, é acionado para desfazer qualquer movimento em direção à aceitação pública da função social da propriedade. Assim é que a coalizão desenvolvimentista agrarista que sustenta tal esforço de regressão normativa cuidou de ocupar os espaços políticos compatíveis com a ambição de legalizar o que até aqui foi considerado transgressão - vide a entrada dos ruralistas no comando da Comissão de Meio Ambiente da Câmara – e procurou apresentar-se como defensora dos direitos dos pequenos agricultores. Mas, principalmente, tratou de arregimentar porta-vozes habilitados a justificar a legalização da expansão dos desmatamentos, em nome da necessidade de produzir alimentos e de valorizar soberanamente os recursos do país. Tanta solidariedade para com os famintos e tanto ânimo nacionalista, num país continental como o Brasil, que apresenta índices monumentais de concentração da posse da terra, poderiam, certamente, ser realizados sem ameaçar de destruição bens coletivos como as águas dos rios, a fertilidade dos solos e a estabilidade dos sistemas biodiversos. Pois é destes bens coletivos que dependem, estes sim, os produtores de alimentos, em sua maioria pequenos produtores, cujas áreas tornam-se cada vez mais exíguas, dada a expansão incontrolada das monocultoras de exportação que dominam a paisagem rural brasileira com a cana, a soja, o eucalipto etc. É a expectativa de aumento imediatista da rentabilidade na exploração destas commodities que explica as presentes investidas contra os instrumentos de regulação pública dos impactos dos negócios privados sobre os espaços não-mercantis de uso comum como, neste caso, as águas, os solos e os sistemas vivos.

A este propósito é significativa a pretensão do substitutivo Aldo Rebelo retirar do Código Florestal o trecho que diz “(...) as florestas reconhecidas de utilidade às terras que reveste são bens de interesse comum (...)” e inserir em seu lugar as expressões “exploração florestal” e “matéria-prima florestal”. Pretende-se, sim, mudar as leis, mas também o vocabulário, de modo a que se passe a aceitar como “floresta” os plantios homogêneos de certas espécies de árvores que não são mais do que parte de uma cadeia produtiva industrial – como a celulose e o óleo de palma - que tenta se “ambientalizar”. Eis que a ofensiva pela expansão das áreas a serem legalmente desmatadas se faz acompanhar da pretensão de “ambientalização” dos interesses ruralistas, ao incluir justificativas para a derrubada de florestas porque, em seu lugar, pretende-se implantar o chamado “deserto verde” da monocultura de árvores.

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