quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Povos da floresta e territórios: serviços ou direitos?

Faltando um ano para ser concluída a elaboração do acordo global sobre clima, cujo prazo é dezembro de 2015, a Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (CQNUMC), de Lima, é um momento chave de negociações. O acordo em discussão criará um regime internacional sobre o clima, determinando obrigações para os países-membro (as Partes) da CQNUMC, e entrará em vigor em janeiro de 2020. Neste debate alguns setores são priorizados, entre eles, o tema das florestas ou a redução do desmatamento e degradação florestal, considerado um “setor” onde as emissões de gás carbônico (CO2), que contribuem para a mudança do clima, podem ser reduzidas de forma mais rápida, mais barata e com benefícios para todos os envolvidos.
Isso significa, na prática, decisões sobre o mecanismo de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (Redd), mais especificamente sobre o seu financiamento, o papel dos mercados e se haverá compensação por Redd. Fortalecer os mecanismos de Redd já é praticamente consenso, mas os países precisam decidir se os créditos gerados pela redução do desmatamento e da degradação serão financiados pelo mercado de carbono ou por outros instrumentos de mercado, e se o investimento de um país em tal iniciativa significará que o mesmo possa usá-lo para diminuir/compensar suas obrigações de redução de emissões.
Pelos mecanismos de compensação e pelo mercado de carbono, um país ou estado não precisaria efetivamente diminuir suas emissões, mas poderia “comprar” essa redução (pelo menos no papel), neste caso por não-desmatamento, de outro país, ou seja, comprar o direito de poluir. Para quem não acompanha os pontos e vírgulas das negociações, isso tudo pode parecer complexo e, às vezes, quase abstrato, mas como não existem florestas sem gente e essas gentes não vivem sem as florestas, esta é uma questão que afetará, e já afeta, a vida das populações tradicionais e indígenas.
Neste debate, vale tomar como emblema o caso brasileiro do Acre, que é considerado referência nas negociações sobre clima. Atualmente, a chamada economia verde no estado é vista nos meios oficiais como uma experiência que harmoniza crescimento econômico e conservação ambiental, e é onde existe o programa jurisdicional de Redd considerado o mais avançado do mundo. O Sistema de Incentivos aos Serviços Ambientais (Sisa), lei estadual acreana aprovada em 2010, é definido como “um conjunto de princípios, diretrizes, instituições e instrumentos capazes de proporcionar uma adequada estrutura para o desenvolvimento de um inovador setor econômico do Século XXI: a valorização econômica da preservação do meio ambiente por meio do incentivo a serviços ecossistêmicos”. Os “serviços e produtos ecossistêmicos” citados são: o sequestro, a conservação, manutenção e o aumento de estoque e a diminuição do fluxo do carbono; a conservação da beleza cênica natural; a conservação da sociobiodiversidade; a conservação das águas e dos serviços hídricos; a regulação do clima; a valorização cultural e do conhecimento tradicional ecossistêmico; e a conservação e o melhoramento do solo. Nesse sentido, estão sendo desenvolvidos cinco programas relacionados: Carbono Florestal (ISA Carbono); Sociobiodiversidade; Recursos Hídricos; Regulação do Clima; e Valorização Cultural e Tradicional. O Programa ISA Carbono foi o primeiro a ser desenhado e implementado e busca alcançar a meta voluntária do governo do Acre de redução de emissões por desmatamento e degradação florestal[1].
         Para avançar com o Sisa, o governo do Acre já recebeu financiamento do Fundo Amazônia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do banco alemão de desenvolvimento KfW, da, também alemã, agência de cooperação internacional GIZ, da organização conservacionista WWF-Brasil e da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em sua sigla em inglês). Para o futuro, o governo do Acre pretende garantir recursos do mercado de carbono e de outros serviços ambientais, voluntários e oficiais.
Ainda nesse terreno, em novembro de 2010, os governos do Acre, da Califórnia (Estados Unidos) e de Chiapas (México) assinaram um memorando de entendimento para discutir as bases de um acordo de comércio de créditos oriundos de Redd. Porém, as organizações da sociedade civil dos Estados Unidos lutam contra modificações no marco jurídico da Califórnia que permitam a lógica do mercado de carbono e da compensação[2]. Para o estado do Acre, serão estratégicas as definições da CQNUMC sobre a oficialização da relação entre Redd e mercado.
         Além de ser necessário realizar uma análise mais aprofundada em termos dos efeitos e impactos do Sisa sobre as demais políticas de Estado e sobre a própria sociedade como um todo, falta, avaliam inclusive alguns dos seus apoiadores, um debate mais amplo e qualificado. O governo estadual afirma que a consulta e participação para a elaboração e implementação do Sisa foram, e continuam sendo, amplas, mas algumas organizações locais, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), argumentam que as mesmas não contemplam a diversidade de perspectivas e pensamentos críticos no estado.
         Outras preocupações estão relacionadas à incidência da lei sobre os territórios federais, como as terras indígenas, as reservas e as florestas públicas, podendo haver sobreposição de poderes, o que colocaria em xeque a constitucionalidade da mesma; ao receio de que o Sisa elimine a cultura extrativista, caso as comunidades sejam proibidas de realizar atividades tradicionais de subsistência, como a extração de látex das seringueiras e as queimadas para roçados; e à privatização do meio ambiente, definido como bem de uso do povo (público) pelo art. 225 da Constituição Federal, quando  instala-se a compra e venda dos chamados serviços ambientais.
            “Querem a gente acuado”
Enquanto o Sisa é institucionalizado, projetos privados de Redd já começam a gerar conflitos nos territórios, como o projeto Purus e os projetos Russas e Valparaíso, todos em vias de registro no Sisa. No caso do Purus, localizado no interior do município de Manoel Urbano, as preocupações estão relacionadas à falta de entendimento sobre o projeto por parte da comunidade; à divisão da comunidade e ao acirramento de conflitos; à impossibilidade de realizar uma série de atividades importantes para a subsistência, sob pena de criminalização; ao fato de que o incremento na renda será mínimo, se efetivamente ocorrer, para quem participa voluntariamente do projeto; e à constatação de que as ações sociais propostas são, na verdade, de responsabilidade do Estado e direitos constitucionais da população, que não podem estar associados e muito menos condicionados à execução do projeto. Receosa com as perdas e insegura quanto às oportunidades e melhorias prometidas pelos proponentes, a comunidade tenta agora sair do projeto e garantir a regularização da terra. Como expressou um seringueiro impactado pelo projeto “Eles querem que nós fique aqui dentro, acuados, num canto, sem poder fazer nada pra, daqui uns dias, a gente não ter nenhum roçado para plantar nossa roça”. 





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