Mesmo no mais destacado bastião do ceticismo, os Estados Unidos, aumenta o consenso de que o planeta corre perigo e que a reação deve começar já No calendário das mudanças climáticas, 2014 poderia ser assinalado como o ano em que os céticos da responsabilidade humana no aquecimento global entraram de vez para o grupo das espécies em extinção. Pelo menos em credibilidade, seus argumentos se derreteram bem antes do que o gelo marinho do Ártico.
Em uma declaração emblemática do momento atual, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, comparou os que ainda negam o fenômeno aos que antes pensavam que a Lua era feita de queijo. Foi em junho de 2014, quando anunciou US$ 1 bilhão para financiar medidas que atenuem as mudanças climáticas. Embora os Estados Unidos continuem entre os três países do mundo não signatários das convenções de clima – ao lado do Vaticano e de Andorra –, o pacote ambiental mostra que até a nação mais poderosa do planeta começa a se curvar à pilha de evidências científicas que comprovam que a Terra está febril. E que a culpa é nossa. Não por acaso, o anúncio ocorreu após a divulgação dos dois últimos relatórios da quinta edição do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, em março e abril deste ano. Com a participação de mais de 800 pesquisadores de 130 países, o estudo prevê que as emissões de gases causadores do efeito estufa elevarão a temperatura média do planeta entre 2,6°C e 4,8°C até o fim do século. E conclui, com “95% de certeza”, que o homem foi o principal responsável pela elevação das temperaturas, especialmente a partir de 1950.
– Os que negam a mudança climática sugerem que ainda existe debate científico, mas não existe – definiu Obama, considerando encerrada a polêmica.
As projeções feitas pelo Painel de Mudanças Climáticas da ONU são tão contundentes que ignorá-las virou um risco. A elevação da temperatura é associada a riscos crescentes de eventos climáticos extremos, infestação de doenças associadas a mosquitos, falta de água e de alimentos. Nada muito diferente do que cientistas já vinham alertando, mas com cada vez maior base de confiabilidade. E de urgência.
– 2014 é um ano importante nessa discussão de mudanças climáticas. Chegamos ao quinto relatório do IPCC e ele deixa claro que a gente já ultrapassou o ponto em que a mitigação das emissões de poluentes seria suficiente para reverter o quadro. Agora precisamos falar em adaptações. Mesmo que parassem todas as emissões, pelos próximos cem anos ainda sentiríamos os efeitos – argumenta Fabio Scarano, vice-presidente sênior da divisão Américas da Conservação Internacional e professor da UFRJ, que foi um dos responsáveis pelo capítulo da América Central e do Sul do IPCC.
Os sintomas estão em toda parte. Porto Alegre teve o janeiro mais quente de sua história e, atualmente, São Paulo sofre com a falta crônica de água. Situações que tendem a se agravar nas próximas décadas, com mais enchentes na região Sul, seca no Sudeste e riscos de desertificação em regiões da Amazônia e do Nordeste. Mas, claro, nada é tão ruim que não possa piorar. O professor Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da USP, explica que o aumento da concentração de gás carbônico na atmosfera tem como consequência uma espécie de “obesidade vegetal”. Assim, apesar de as plantas crescerem mais, por fazerem mais fotossíntese com o CO2, perdem nutrientes, porque a concentração de nitrogênio é reduzida. A se confirmarem as previsões de que a concentração de gás carbônico na atmosfera dobrará até 2080, o percentual de nitrogênio das plantas cairá 7%, afetando a qualidade agrícola.
– Talvez seja preciso mudar o cultivo das regiões, e isso custa dinheiro. É o custo da mudança climática. A qualidade da soja vai baixar, o alimento pode se tornar mais caro, o que pode levar a problemas econômicos, porque a qualidade esperada pelo comprador pode não ser correspondida – enumera Buckeridge.
Em vez de se ater a um discurso apocalíptico, no entanto, os pesquisadores preferem mirar nas oportunidades de uma virada sustentável. Visto como um bom exemplo ambiental no cenário global, o Brasil teria chance de ser protagonista da mudança.
– O Brasil é o celeiro do mundo, poderíamos aproveitar este momento para produzir mais comida. Para isso, precisaríamos de uma nova revolução verde, investindo em técnicas de biologia molecular – defende Buckeridge.
A virada também passa por mudança nas fontes de energia. Segundo Suzana Kahn, professora do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ e vice-presidente do IPCC, 80% do aumento das emissões dos gases do efeito estufa se deve à queima de combustíveis fósseis, o que torna a questão do aquecimento global um problema no uso de energia. E os obstáculos para a transição são mais de natureza econômica do que tecnológica.
– As tecnologias existem. Temos veículos elétricos, biocombustíveis, energia solar. Não precisamos descobrir nada novo, mas passa por uma questão de economia, de mudar o modelo, retirar subsídios de setores poluentes. Com isso já é possível reduzir significativamente as emissões. Algumas mudanças já estão acontecendo, tanto que, mesmo com a crise, foram as energias renováveis as que mais cresceram – pondera Suzana.
Colocar a culpa nos custos não serve como desculpa para a inércia. Fabio Scarano, da Conservação Internacional, lembra que medidas baratas como proteger os mangues podem ser tão eficazes como construir caríssimos diques para conter a elevação do nível dos oceanos.
– Ficou provado que, quando o tsunami atingiu as ilhas do Pacífico, as que tinham mais cobertura vegetal na costa sofreram menos impacto do que as que não tinham – exemplifica Scarano.
Diante das adversidades climáticas, a gestão das cidades precisará ser repensada para evitar o caos. Em vez de agir nas emergências e se espantar com cada “chuva histórica”, governantes precisarão investir em planos de contenção de longo prazo.
– Existe uma tendência de culpar a natureza, mas onde as pessoas mais atingidas costumam morar? Geralmente em áreas de risco, com drenagem negligenciada ao longo dos anos. A mudança no clima vai exigir outra maneira de pensar nas ações, especialmente na gestão pública. É uma mudança global, mas requer ações locais – defende o biólogo Jackson Müller, professor da Unisinos.
Aos que preferem criticar o IPCC como instrumento político, o climatologista do Centro Polar e Climático e chefe do Departamento de Geografia da UFRGS, Francisco Aquino, contrapõe com a ciência:
– Que decisão os governos vão tomar com base no relatório, a ciência não opina. A ciência não tem lado. É uma resposta, soma dois com dois e dá quatro. Essa minoria cética não tem nada de substancial na produção científica internacional. Não é que a gente não os queira, a gente não tem como considerar.
Os prognósticos indicam que os mais pobres serão inicialmente os mais impactados pelas mudanças, mas o problema está longe de ser uma questão de classe: não há imunidade climática.
– Se a sociedade quiser virar as costas e achar esse problema não vai chegar na sua casa será um grande engano, porque isso já está no quintal de todo mundo. É um fenômeno global. Não tem como escapar – alerta Aquino
Junho deste ano foi o mais quente desde 1880
Basta olhar para o mapa de anomalias climáticas produzido pela Nasa (na ilustração deste post) para enxergar como o planeta está esquentando. A temperatura média em junho de 2013 ficou 0,61ºC acima do padrão histórico entre 1951 e 1980. Na ilustração, é possível identificar os pontos de aquecimento, assinalados pelas cores amarelo, laranja e vermelho. O Brasil acompanha a onda. Na maior parte do Rio Grande do Sul, a temperatura média ficou 1ºC acima da média. Outra medição, feita pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA), mostra que a temperatura média no mês de junho deste ano foi a mais quente desde que os registros começaram, em 1880.
O MUNDO COM FEBRE
> O Brasil está aquecendo em todas as regiões, com chuvas irregulares. No Rio Grande do Sul, a tendência é mais calor e chuva: além da elevação das temperaturas, que fez Porto Alegre registrar em 2014 o janeiro mais quente desde o início das medições, em 1916, o volume de precipitações já aumentou 8% em relação aos padrões históricos de 1945 até 1974.
> Os Estados Unidos enfrentam uma das piores secas de sua história recente. Em maio, mais de 30% do país registrava seca, tendo pelo menos sete Estados com estiagem severa em metade do território. Em compensação, junho deste ano foi o sexto mais úmido desde que as medições nacionais começaram, em 1895.
> As emissões crescentes de gases de efeito estufa aumentarão significativamente o risco de inundações na Europa, especialmente na região litorânea. Já no sul do continente a seca deve se acentuar, reduzindo a disponibilidade de água, afetando a produtividade agrícola.
> Até 2020, projeta-se que entre 75 e 250 milhões de pessoas sejam expostas à maior escassez de água na África, com redução de até 50% na produção agrícola irrigada pela chuva e ameaças de desertificação.
> Na Ásia, o derretimento das geleiras no Himalaia deve aumentar as inundações e avalanches de pedras de encostas. As cheias ameaçam mortalidade endêmica por diarreia e cólera. Bangladesh é um dos países mais ameaçados: até 2050, pode perder 17% de seu território pela elevação do nível do mar, o que obrigaria o deslocamento de 18 milhões de pessoas.
> Previsão de agravamento de períodos de seca na Austrália. Em junho deste ano, choveu 28% da média normal para o mês no oeste do país. Problemas de falta de água devem se intensificar até 2030, com perda significativa de biodiversidade.
> Se continuar neste ritmo, há risco de que, em 2050, o Ártico não tenha mais gelo marinho. A mudança promove a abertura de novas rotas marítimas e prospecções petrolíferas, mas também pode acirrar disputas entre potências pelo controle.