quarta-feira, 27 de abril de 2016

Construções à beira-mar são insustentáveis, alertam especialistas em novo livro sobre aquecimento global

Fonte: g1.globo.com

o que deu errado na ciclovia do Rio de Janeiro


Eu ainda estava lendo as primeiras 200 páginas do livro “A Espiral da Morte – Como a Humanidade alterou a Máquina do Clima”, de Claudio Angelo (Ed. Companhia das Letras) quando a ciclovia de São Conrado não resistiu à sua primeira ressaca e desabou. Ontem (24), quando terminei de lê-lo, fui assaltada por um forte sentimento de que alguém não está fazendo o dever de casa direito na hora de escolher lugares e obras, públicas ou não, na cidade do Rio de Janeiro.  Está lá, na página 346 do livro que contém centenas de informações obtidas com apuração científica rigorosa, para quem quiser ler:

“Especialistas em gerenciamento costeiro têm proposto que uma faixa de cinquenta metros a duzentos metros de distância da praia seja deixada livre de construções, como medida de segurança”. Isso por causa das evidências de que todo o gelo contido na península Antártica, que corresponde a mísero meio por cento do que existe no continente Antartida, se derretesse, seria capaz de causar uma elevação de meio metro no nível médio do mar no planeta. E há motivos para se acreditar que isso pode acontecer.  A península Antártica talvez seja o lugar do planeta que mais esquentou no último século.

Talvez seja um jeito estranho de começar um texto que pretende apresentar para os leitores um livro novo. Mas, enquanto lia, não pude evitar um espanto diante do aparente menosprezo das autoridades municipais aqui do Rio pelo que a ciência – nada menos do que isso – vem alertando. Claudio Angelo, jornalista que há década e meia vem acompanhando com lupa científica o debate em torno das mudanças climáticas, dedicou três anos de sua vida para escrever esse livro. Sim, ele fez o dever de casa direito. No jargão jornalístico diz-se que uma reportagem está “redonda” quando ela está bem embasada, com informações consistentes e quando o repórter fez entrevistas com pessoas que sabem do que estão falando. Pois o livro de Angelo está redondo.

Infelizmente, porém, não são apenas as autoridades municipais do Rio que preferem fechar os olhos aos anúncios de que cada vez mais será preciso se adaptar às mudanças que já estão surgindo. Um dos comentários recorrentes ao dia seguinte da assinatura do Acordo de Paris é que nenhuma atenção foi dada ao discurso da presidente Dilma sobre o tema que, efetivamente, a levara a Nova York. Nem por parte da mídia, nem por parte da opinião pública. A crise política, as tratativas de um partido que quer o poder sem passar por eleições, roubaram a cena.

Mas, vamos ao conteúdo do livro. Angelo vai, literalmente, do Ártico à Antartida, conversando com cientistas e técnicos de diversos segmentos para mostrar que os impactos das atividades humanas já estão sendo sentidos nos dois polos, com ramificações que se espalham pelo mundo e, sim, chegam a nós, brasileiros.

“A espiral descendente do gelo e da neve no Ártico nos últimos anos pode já estar impactando de forma negativa uma coisa que todo brasileiro conhece melhor do que gostaria: o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, o IPCA, nossa principal medida de inflação”, escreve o autor.

A explicação científica para este fenômeno é um pouco mais complicada, mas o resultado pode ficar bem claro até para os leigos. Uma onda de calor fortíssima assolou a Rússia em 2010, e os cientistas apontam uma forte ligação entre esse fenômeno e a mudança nos ventos que acompanha o degelo do Oceano Ártico. Por causa do calor, incêndios devastaram as florestas russas e milhões de hectares de lavouras de trigo foram perdidos, o que elevou o preço da comida no mundo inteiro. No Brasil, o IPCA fechou em 5,9%, puxado pelos alimentos, contra 4,31% no ano anterior.

Outro exemplo: uma seca recorde nos Estados Unidos em 2012, causada por uma redução dramática da cobertura de neve no hemisfério norte,  provocou naquele país uma quebra também inédita de safra, que elevou o preço desses grãos no mundo todo e fez o Brasil assumir a dianteira da produção mundial de soja. Como efeito colateral, o desmatamento na Amazônia disparou na segunda metade de 2012, “crescendo mais de 200% em setembro e levando a taxa anual de 2013 à sua primeira elevação em cinco anos: 28%”.

Entre entrevistas e longos estudos, uma das conclusões que Claudio Ângelo nos leva a tirar é que “o que acontece nos polos impacta diretamente os trópicos e vice-versa”. A metáfora usada pelo cientista norte-americano Wally Broecker é forte:  as surpresas climáticas reveladas pelo gelo polar e outros indicadores causam no homem o mesmo sentimento que ele teria se atravessasse uma autoestrada com uma venda nos olhos.

“Ele não sabe de onde vem a pancada. Vamos ser atingidos, mas não sabemos como... Só descobrimos que há mais e mais coisas que precisamos saber e que não sabemos. Mais e mais coisas que podem acontecer sobre as quais nunca pensamos. Mas não temos escolha. A escolha é um monte de gente passar fome”.

Claudio Angelo, como jornalista, não deixa de rechear as informações que recolheu com dados históricos e recentes. Além de relatos do que vivenciou no tempo de suas pesquisas, que vão deixando os leitores sem querer tirar os olhos das páginas. Um jogo de futebol no oceano glacial, dias de enjoo por conta do design antigelo do navio do Greenpeace, até a revelação de um segredito dos heróis desbravadores dos mares gelados: come-se muito bem a bordo para compensar o frio. A maior de todas as correntes marinhas do mundo na Antártida, e lá estava o jornalista, sendo jogado de um lado para o outro dentro de um navio.

Os registros revelados na rigorosa apuração não deixam o leitor apaziguado. O volume do gelo marinho no verão hoje é cerca de 70% menor do que a média histórica,  e um descongelamento maciço do polo Norte pode acontecer até mesmo antes de 2030, talvez até uma década antes.

“A sociedade precisa começar a se preparar para a realidade da mudança climática no Ártico”, afirmam os cientistas ouvidos por Claudio Angelo.

Ocorre que os países do Ártico já estão se preparando para se beneficiar economicamente desse degelo, integrando o polo Norte à economia global de mercado. Estima-se que o Ártico tenha 30% das reservas não descobertas de gás natural do planeta e 13% das reservas não descobertas de petróleo. Com o degelo, ficará mais fácil explorar essas riquezas. Às favas com um Acordo como o obtido em Paris e com o fato de que a humanidade só pode emitir mais 1 trilhão de toneladas de gás carbônico até o fim do século se quiser ter uma chance de evitar mais dois graus de aquecimento até o fim do século. “Estados Unidos, Canadá, Rússia, Noruega e Groenlândia já iniciaram uma corrida a esse pote de ouro”, escreve o jornalista. E hoje há quase trinta licenças de prospecção e vinte de exploração de óleo e gás ativas na Groenlândia, cuja primeira-ministra Aleqa Hammond afirmou recentemente:

“É errado afirmar que a mudança climática só resultou em coisas ruins. O novo clima pode ser benéfico para os groenlandeses”.

Não importa muito, em nome do desenvolvimento econômico, que os próprios moradores locais possam estar sendo condenados, por exemplo, a terem que mudar sua dieta, já que precisam basicamente de proteínas que vêm do mar, o mesmo mar que será impactado pela exploração dos recursos. Resta aos ambientalistas o papel de apontar esse tremendo paradoxo. E ficar observando, quase impotentes.

“As mesmas pessoas que criaram o problema (do aquecimento), em vez de verem isso como alerta de que nós devemos cortar nossa dependência de combustíveis fósseis, estão anunciando: ‘Vamos esfregar as mãos e começar a pensar em dólares’”, disse a Claudio Angelo Kumi Naidoo, diretor executivo do Greenpeace.

O livro tem 440 páginas de texto, e é claro que não vou conseguir resumi-lo neste espaço. Recomendo muito a leitura. Não dá para fechar os olhos ao fenômeno que, verdadeiramente, está mudando a face da civilização, não só do ponto de vista ambiental, mas também econômico e social. Afinal, registros da OCDE dão conta de que, em 2005, 40 milhões de pessoas já tinham sido expostas aos eventos extremos.

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